ARTIGO >> DISCIPULADO EM PERIGO

17/08/2018 20:11

 

Não podemos produzir discípulos em massa; em vez disso, temos que concentrar esforços em alguns poucos[1]

 

Se o evangelho chegou até nós no século XXI, devemos dar o crédito aos inumeráveis discípulos que, no decorrer dos séculos, arduamente batalharam por ele e, consequentemente, pelo discipulado. Nesse breve comentário sobre o tema, no entanto, desejo mostrar alguns empecilhos gerais a esse processo de discipulado na Igreja, que a tem impedido de caminhar mais fortemente em prol do Senhor.

  • A Falta de entendimento acerca do “Sacerdócio universal”

 

            Um dos princípios da Reforma Protestante foi o sacerdócio universal do todos os santos. Esse princípio modificou toda a hierarquia eclesiástica do século XVI, trazendo, por isso, grandes mudanças à igreja. Uma vez que todos nós somos sacerdotes, chamados por Deus para trabalhar no corpo de Cristo de formas diferentes, temos a capacitação vinda do Espírito Santo de Deus para servir. Assim, o serviço não é algo exclusivo de um clero, mas da IGREJA, que somos nós. Porém, há um certo retrocesso no pensamento em muitas igrejas dos dias de hoje.

 

Menos de 1% dos membros das igrejas evangélicas encontra-se trabalhando para Cristo[2]

 

Em nossos dias sentimos, mesmo na igreja evangélica, forte tendência a uma liderança cada vez mais centralizadora e elitizada. Se por um lado a elitização do clero é consequência da postura da própria igreja que mistifica e destaca seus líderes como seres especiais, acima da normalidade, por outro é fruto também do coração enganoso do próprio líder que procura para si uma posição em que seja servido, admirado e seguido sem questionamentos.[3]

 

Não há dúvidas de que são poucas pessoas que se dispõem a trabalhar por Cristo. Mas será que a falta de envolvimento é somente culpa das pessoas? Muitos, com certeza, são relapsos no serviço de Cristo, mas outros ainda não descobriram como trabalhar por Jesus, uma vez que ainda não foram despertados ou motivados pelas igrejas a terem ministérios significativos com pessoas, e não apenas com atividades eclesiásticas. Da mesma forma, a demora em inserir os novos crentes na vida diária da Igreja e na comunhão dos irmãos, tem produzido “crentes imaturos, sem funções, desafios ou envolvimentos”[4]. A visão clerical contraria os princípios da reforma protestante e, sobretudo, a Palavra de Deus.

 

  • A falta de visão da liderança

 

Caso a vida da igreja favoreça mais o ativismo ao invés do “ser como Cristo”, teremos alguns poucos membros trabalhando para entreter outros muitos com programações cada vez mais sofisticadas. A liderança, cerca de 15% da membresia, trabalha fornecendo programações aos 85% dos membros restantes.

Caso os ministérios da igreja assumam uma importância acima do serviço de todos, correremos o risco de perder os nossos membros, pois, como bem descreveu o saudoso Pr. Mauro Israel, “A assistência pessoal não é uma atividade para concorrer com outros ministérios ou departamentos na igreja. É a própria igreja no exercício da mutualidade”. Sem a mutualidade necessária entre os membros, ou perdemos os nossos para o mundo, ou os perderemos em nossas próprias estruturas.

Se os cultos de domingo e as aulas de Escola Dominical para os membros são tudo que as igrejas locais tem a oferecer para desenvolver convertidos em crentes maduros, então essas igrejas estão derrotando sua própria finalidade, por contribuírem para uma falsa segurança; e se os novos crentes seguirem o mesmo exemplo preguiçoso, isso, finalmente, lhes fará mais mal do que bem.[5]

 

Não muito raro, nós ministramos a dimensão da assistência pessoal partindo do princípio de que se a pessoa está presente, então está tudo bem com ela. Formou-se uma tradição perigosa nas nossas igrejas de que estar presente significa estar envolvido (…) Às vezes a pessoa está presente, frequenta todos os cultos, tem todas as ‘presenças’ na Escola Bíblica Dominical, mas está precisando desesperadamente de cuidados”[6]

 

Para combater esse movimento, devemos atentar para a verdade de Deus sobre a igreja e seu trabalho, uma vez que “no conceito neotestamentário, ‘igreja’ é uma comunidade sem fronteiras e, portanto, há necessidade de sacramentalizarmos mais os santos e menos os templos”[7]. Segundo o Pr. Franklin: “Na Igreja, o ministério é do povo, enquanto a obra dos ministros é a capacitação do povo para cumprir seu ministério[8]. Portanto, se ao invés de 15% fornecerem programações, tivéssemos os mesmos capacitando/treinando os membros para um ministério já delineado pela igreja, teríamos, assim, um grande despertamento (Ef 4.1-16), e a base do serviço seria a Igreja num todo, não apenas exclusiva da liderança.

 

O Pr. Mark Dever também escreveu sobre o assunto:

Uma evidência que uma igreja pode não ter o entendimento bíblico da conversão e da evangelização é esta: o número de membros é bem maior do que o número dos que participam dos cultos. Essa igreja deveria parar e perguntar por que a sua pregação produz tão grande número de membros que ela nunca vê e, apesar disso, sentem-se seguros de sua salvação. O que lhes ensinamos sobre o significado do discipulado em Cristo? O que lhes falamos sobre Deus, o pecado e o mundo?[9]

 

Um outro fenômeno moderno, ligado à visão da liderança da Igreja, é o gigantismo. Igrejas com 150 a 30.000 membros tendem a criar estruturas tão complexas e caras para abrigarem seus membros, que ficam impossibilitadas de investir nas áreas prioritárias bíblicas, devido aos grandes gastos com a estrutura[10]. Desse modo, a igreja, ao olhar apenas para si mesma, não perpetuando o IDE de Cristo e a multiplicação espiritual, lentamente irá morrer.

 

  • A falta de cuidado para com os novos convertidos

 

Pensa-se que as conversões se dão somente por intermédio de atividades, porém não é o que os estudos demonstram. Notamos que muitas igrejas se enchem de “crentes” de outras igrejas, num efeito quase que migratório, cuja origem está no desejo por programações e por suporte adequado à família (berçário, atividade infantil, programações de jovens, etc). E os incrédulos? Segundo o ministério de Clubes Bíblicos [11], a maioria das pessoas se convertem por influência de pessoas próximas, especialmente parentes e amigos. Muitas atividades evangelísticas se concentram em alcançar os distantes, enquanto que os que estão perto, que são os mais acessíveis, são deixados sem um cuidado específico. Devemos desejar ganhar o mundo para Jesus, mas comecemos prioritariamente pela nossa “Jerusalém”.

 

O evangelismo e o discipulado devem andar juntos. É notório, em muitos lugares do mundo (Canadá, EUA, Europa), um declínio da influência das igrejas, assim como um declínio da própria igreja, e isso pelo fato de não haver uma perpetuação do evangelismo e do discipulado. As pessoas morrem, se mudam para outras regiões e transferem-se de igrejas, o que é mais comum. Esse fenômeno de flutuação da membresia, crescente num período pós-moderno, pode aniquilar certas igrejas, caso não haja um projeto prático de evangelismo e discipulado. Esses projetos simples, ensinam a Igreja a obediência à Palavra de Deus, contribuindo numa reafirmação doutrinária e numa fé real.  

 

  • A sedução da vida “moderna”

 

A igreja pode ser comparada com uma grande fábrica, que constantemente produz missionários, pastores, crentes fiéis, líderes corajosos, todos com uma mesma missão, mas com papéis diferentes. A visão, porém, do mundo moderno ou pós-moderno, sugere ou impele as pessoas a muitos papéis diversos, que embaçam a verdadeira missão.

O consumismo tem entrado em toda a sociedade e, infelizmente, na vida da igreja, fazendo com que o dinheiro e o tempo sejam investidos prioritariamente no entretenimento e no lazer. O trabalho e o consumo estão tão intimamente ligados em nosso contexto que já não existe tempo para outras coisas, como o culto doméstico e para a instrução bíblica. O que realmente vale a pena ser buscado tem perdido espaço.

O pastor Rubens Amorese descreve o fenômeno da obesidade espiritual, descrevendo em primeira pessoa a ação demoníaca: “para torná-los psicologicamente obesos, eu lhes proporia uma leve distorção do conceito de ‘autoestima’, hoje tão em voga. E os levaria a uma exagerada atenção consigo mesmos. Uma sutil fixação em suas necessidades. A palavra certa é egoísmo (…) O fato é que, sob a desculpa de ‘amarem a si mesmos para poder amar os outros’, eu os levaria a nunca compreenderem adequadamente o significado de ‘serviço cristão’; e passariam o resto de   suas vidas buscando a própria satisfação (…). Uma vez instaurada a cultura da autoestima, fica fácil trabalhar melindres, rancores, murmurações, dissenções, facções, cansaço, falta de ânimo etc. Ou seja, fica fácil produzir numa alma o germe da ‘antimissão’ e depois entregá-lo, como herança, a seus filhos (…). Em poucas gerações, a fábrica não produziria mais seus próprios missionários; seriam todos terceirizados”[12]

 

Nesse artigo, alguns problemas foram erguidos com a finalidade de alertar a igreja diante destes fatos. A missão não pode parar, o processo de discipulado também não. Então, devemos cuidar para que o sacerdócio seja da igreja e não de um grupo, devemos cuidar para que a liderança capacite os irmãos ao serviço, para que estes não esqueçam de amar e amparar os novos convertidos e de ter o máximo cuidado com as seduções da vida moderna!

 

Bibliografia:

AMORESE, Rubens. Fábrica de Missionários: nem leigos, nem santos. MG: Ultimato, 2008.

ARAGÃO. Humberto Maia. O líder cristão e sua identidade cultural. Ed: Descoberta, 1999.

Clubes Bíblicos. Manual do Líder.

COLEMAN, Robert E. O plano mestre de evangelismo. e_book: Mundo Cristão, 2006.

DEVER, Mark. O que é uma igreja saudável? SP: FIEL, 2009.

FERREIRA, Franklin & MYATT, Alan. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. SP: Vida Nova, 2007.

KUHNE, Gary W. O discipulado dinâmico: como ajudar o convertido a crescer, a alcançar outros e a se integrar na vida da igreja. (1°ed 1979) 1982: Betânia.

LIDÓRIO, Ronaldo. Plantando igrejas: teologia bíblica, princípios e estratégias de plantio de igrejas. SP: Cultura Cristã, 2007.

MOREIRA, Mauro Israel. Chega junto: assistência pessoal na dinâmica de vida da Igreja. RJ: Horizontal, 1997.

SHAW, Mark. Lições de Mestre: 10 insights para a edificação da igreja local. SP: Mundo Cristão, 2004.

 

[1] KUHNE, 1982, pg.40.

[2] Ibid, pg.11

[3] LIDÓRIO, 2007, pg.64

[4] Ibid, pg.23

[5] COLEMAN, 2006, pg.42

[6] MOREIRA, 1997, pg.12

[7] LIDÓRIO, 2007, pg.46

[8] FERREIRA, 2007, pg.951.

[9] DEVER, 2009, pg.82.

[10] Ibid, pg.62

[11] Clubes Bíblicos. Manual do Líder, pg.10

[12] AMORESE, 2008, pg. 44-45.

 

FONTE:

https://edegraca.com.br/?p=35