ESTUDO -> REVISANDO A HISTÓRIA DA MULHER SAMARITANA (João 4)

31/08/2015 11:19

 

 

Jesus e a mulher Samaritana: Relendo uma amada história

 

O capítulo que relata a história de Jesus encontrando a mulher Samaritana junto ao poço de Jacó, em João 4, começa definindo o cenário para o que acontecerá mais tarde em Samaria e está firmado no que aconteceu na Judeia no tempo em que já  se desenvolvia o Evangelho. A popularidade crescente de Jesus resultou em um significativo número de seguidores.

Seus discípulos realizaram um antigo ritual Judaico de lavagem cerimonial com água, assim como fez João Batista e seus discípulos. O ritual representava a confissão dos pecados das pessoas e seu reconhecimento da necessidade do poder purificador do perdão de Deus. Quando ficou claro para Jesus que as multidões estavam se tornando maiores, mas especialmente quando soube que muitos fariseus estavam alarmados, ele decidiu que era hora de ir para a Galiléia para continuar seu ministério (versículos 1-3).

 

Geografia

 

O texto simplesmente diz que Jesus “teve de passar por Samaria” (vs.4). Talvez, neste momento uma curta aula de geografia seja útil. As terras Samaritanas ficavam entre as terras da Judéia e da Galiléia. O caminho contornando Samaria levava o dobro do tempo, ao invés dos três dias necessários indo direto da Galiléia a Jerusalém, porque evitando Samaria era preciso atravessar o rio Jordão duas vezes para seguir um caminho a leste do rio (Vita 269). O caminho através de Samaria era mais perigoso, porque eram comuns os ânimos se exaltarem entre Samaritanos e Judeus (Ant. 20,118; Guerra 2.232). Não nos é dita a razão pela qual Jesus e seus discípulos precisavam passar por Samaria. João simplesmente diz que Jesus “tinha que ir”, implicando que para Jesus isto não era comum. Talvez Jesus precisasse chegar à Galiléia relativamente rápido. Mas o texto não nos dá nenhuma indicação de que ele tinha um convite pendente para um evento na Galiléia para o qual ele estava atrasado. Ele saiu quando sentiu a iminência de um confronto com os fariseus sobre a sua popularidade entre os Israelitas. Isto estava associado à compreensão de Jesus que o tempo para tal confronto ainda não tinha chegado. Na mente de Jesus, o confronto com a liderança religiosa da Judéia (e não se enganem sobre isso, os principais fariseus eram parte integrante de tal liderança), neste momento era prematuro e que muito precisava ser feito antes de ir para a cruz e beber do cálice da ira de Deus, em nome da antiga aliança com o povo  e as nações do mundo. A maneira como Jesus via os Samaritanos e seu próprio ministério entre eles pode nos surpreender à medida que continuamos a examinar esta história.

Sabemos que os movimentos e as atividades de Jesus foram todas feitas de acordo com a vontade e a liderança do Pai. Ele só fez o que viu o Pai fazer (Jo 5: 19). Sendo este o caso, podemos estar certos de que a jornada de Jesus através de Samaria, neste momento foi dirigida por seu Pai e assim, também, foi a sua conversa com a mulher Samaritana.

A surpreendente jornada  de Jesus através de território hostil e herético tem um significado além de qualquer explicação superficial. Em um sentido muito real, desde o momento que Seu filho real foi eternamente concebido na mente de Deus,  o plano insondável de Deus e sua missão, era  ligar em uma  unidade redentora toda a sua amada criação. Jesus foi enviado para  produzir a paz entre Deus e as pessoas, bem como entre as pessoas e os povos. A realização desse grande propósito começou com um encontro desagradável  entre Jesus e aqueles que praticamente moravam ao lado – os Samaritanos.

 

Os Samaritanos  

 

As fontes nos apresentam, pelo menos, duas histórias diferentes dos Samaritanos. Uma – de acordo com Samaritanos Israelitas, e a outra – de acordo com Judeus Israelitas. Enquanto existem dificuldades sobre a confiabilidade dos documentos antigos contaminados pela polêmica Judaica- Samaritana, bem como a datação tardia das fontes de ambos os lados, algumas coisas podem, contudo, ser estabelecidas. A estória Samaritana de sua história e identidade correspondem aproximadamente ao seguinte:

 

1) Os Samaritanos chamavam-se a si mesmos de Bnei Israel (Filhos de Israel).

2) Os Samaritanos eram um grupo considerável de pessoas que acreditavam  preservar a religião original do antigo Israel. O nome Samaritano traduzido literalmente do hebraico significa Os Guardiões (de leis e tradições originais). Embora seja difícil falar em números concretos, a população Samaritana no tempo de Jesus era comparável àquela dos Judeus e incluiu a grande diáspora.

3) Os Samaritanos acreditavam que o centro de adoração de Israel não deveria ter sido o Monte Sião, mas sim o Monte Gerizim. Eles argumentaram que este era o local do primeiro sacrifício Israelita na Terra (Dt 27:4) e que continuou a ser o centro da atividade sacrificial dos patriarcas de Israel. Este era o lugar onde as bênçãos foram pronunciadas pelos antigos Israelitas. Os Samaritanos acreditavam que Betel (Jacob), o Monte  Moriá (Abraão) e o Monte Gerizim eram o mesmo lugar.

4) Os Samaritanos tinham  essencialmente um credo quádruplo: 1) Um Deus, 2) Um Profeta, 3) Um Livro e 4) Um  Lugar.

5) Os Samaritanos acreditavam que as pessoas que se chamavam Judeus (crentes no Deus de Israel situados na Judéia) haviam tomado o caminho errado em sua prática religiosa pela importação de novidades para a Terra durante o retorno do exílio Babilônico.

6) Os Samaritanos autênticos rejeitaram a supremacia da dinastia Davídica em Israel. Eles acreditavam que os sacerdotes levitas em seu templo eram os legítimos líderes  de Israel.

 

Agora que fizemos um resumo parcial levando em conta o outro lado da história e as crenças dos Samaritanos, vamos nos voltar para a versão Judaica da mesma história. Este registro essencialmente origina-se de dois Talmuds e sua interpretação da Bíblia Hebraica, de Josefo e do Novo Testamento.

 

1) Os Samaritanos eram um grupo de pessoas com misturas teológicas e étnicas. Eles acreditavam em um Deus único. Além disso, eles associavam seu Deus, com o Deus que deu a Torá ao povo de Israel. Os Samaritanos são geneticamente relacionados aos remanescentes das tribos do norte que foram deixados na terra após o exílio Assírio. Eles se casaram com  gentios, que foram transferidos para Samaria pelo imperador Assírio. Este ato de desapropriação e transferência de sua terra natal foi feito em uma tentativa estratégica de destruir a identidade do povo e prevenir  qualquer potencial de futura revolta.

2) Nos escritos rabínicos Judaicos, os Samaritanos são geralmente referidos pelo termo “Kuthim.” O termo está provavelmente relacionado a um local no Iraque do qual foram importados exilados não Israelitas para Samaria (2 Reis 17:24). O nome Kuthim ou Kuthites (de Kutha) foi usado em contraste com o termo “Samaritanos” (os guardiões da lei). Os escritos Judaicos enfatizaram a identidade estrangeira da religião e prática Samaritanas, em contraste com a verdadeira fé de Israel, que eles chamariam especialmente em um período posterior, como Judaísmo Rabínico [1]. A interpretação rabínica dos Samaritanos não foi totalmente negativa.

3) De acordo com 2 Crônicas 30:1-31:6, a alegação de que as tribos do norte de Israel foram todas exiladas pelos Assírios e, portanto, aqueles que ocuparam a terra (Samaritanos) eram de origem não Israelita é rejeitada em uma leitura mais atenta da Bíblia Hebraica. Esta passagem diz que nem todas as pessoas do reino do norte foram exiladas pelos Assírios. Alguns, talvez confirmando a versão Samaritana, permaneceram mesmo após a conquista Assíria da terra no século 8 AC.

4) Os Israelitas situados na Judéia (os Judeus) acreditam que não só os Samaritanos optaram por rejeitar as palavras dos profetas a respeito supremacia de Sião e dinastia Davídica, mas  também deliberadamente mudaram a própria Torá para ajustar sua teologia e práticas heréticas. Esta é uma das visões que podem ser tiradas da comparação dos dois Pentateucos, a Torá dos Samaritanos e a Torá dos Judeus. O texto Samaritano permite leitura muito melhor do que o mesmo Judeu. Em alguns casos, as histórias da Torá Judaica parecem truncadas, com pouca  lógica e fluxo narrativo não claro. Em contraste, os textos da Torá Samaritana parecem ter um fluxo narrativo muito mais suave. Superficialmente, isto torna a Torá Judaica problemática. Após uma análise mais aprofundada, no entanto, isso poderia levar ao argumento de que o Pentateuco Samaritano seria uma revisão ou edição tardia de texto Judaico anterior. Com base neste e em outros argumentos, estamos de acordo com a visão Judaica  argumentando que a Torá Samaritana é uma revisão magistral e teologicamente dirigida  dos primeiros  textos Judaicos correspondentes.

 

O Encontro

 

Ao descrever o encontro, João faz várias observações interessantes que têm grandes implicações para o nosso entendimento dos versículos 5-6:

 

“Então ele veio a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto do terreno  que Jacó tinha dado a seu filho José. O poço de Jacó estava lá, e Jesus, cansado como estava da viagem, sentou-se ao lado do poço. Era cerca da hora sexta”.

 

Primeiro, João menciona a cidade Samaritana chamada Sicar. Não está claro se Sicar era uma vila muito perto de Siquém ou a própria Siquém [2]. O texto simplesmente chama a nossa atenção para um local perto da  terra que  Jacó deu a seu filho José. Se não era o mesmo lugar, foi certamente na mesma vizinhança, no sopé do Monte Gerizim. Embora isso seja interessante e mostre que João era realmente um morador do local, conhecer a geografia detalhada da antiga Palestina Romana, não é menos importante, e talvez ainda mais importante, uma vez que o autor do Evangelho chama a atenção do leitor para a presença de uma testemunha silenciosa para este encontro – os ossos de José. Isto é como o livro de Josué fala sobre o evento:

 

“Agora, eles enterraram os ossos de José, que os filhos de Israel trouxeram do Egito, em Siquém, no pedaço de terra que Jacó havia comprado dos filhos de Hamor, pai de Siquém, por cem peças de dinheiro, e se tornaram a herança dos filhos de José “(Js.  24: 32).

 

A razão para esta referência a José, no versículo 5 só se tornará clara quando vemos que a mulher Samaritana sofreu em sua vida de forma semelhante a José. Se esta interpretação  da história é correta, que assim como na vida de José, o sofrimento inexplicável que passou teve a finalidade de levar a salvação a Israel, do mesmo modo o sofrimento na vida da mulher Samaritana   levou à salvação dos Samaritanos Israelitas naquela localidade (4 : 22).

João continua: “Ali ficava o poço de Jacó, e Jesus, cansado como estava da viagem, sentou-se ao lado do poço. Era quase a hora sexta “(v. 6). Tradicionalmente se assume  que a mulher Samaritana era uma mulher de má fama. A referência à hora sexta  (cerca de 12h) tem sido interpretada como se ela estivesse evitando a multidão de outras mulheres da cidade tirando água. A hora sexta bíblica era supostamente o pior momento possível do dia para se deixar a moradia e se aventurar no calor escaldante. “Se alguém for tirar água, neste horário, poderíamos concluir apropriadamente que estava tentando evitar as pessoas”, diz o argumento.

Vamos, no entanto, sugerir uma outra possibilidade. A teoria popular a vê como uma mulher particularmente pecadora que havia caído em pecado sexual e, portanto, foi chamada por Jesus a prestar contas sobre os vários  maridos em sua vida. Jesus disse a ela, como a teoria popular diz, que Ele sabia que ela anteriormente teve cinco maridos e que atualmente ela estava vivendo com seu “namorado”,  sem os limites do casamento e que ela não estava apta para jogar jogos espirituais com Ele! Deste ponto de vista, a razão pela qual ela evitou a multidão é precisamente por causa de sua reputação de compromissos familiares de curta duração.

Primeiro, 12:00 hs  ainda não é o pior horário para andar no sol. Se fosse 15:00 hs (hora nona) a teoria tradicional faria um pouco mais de sentido. Além disso, não fica claro se isso ocorreu durante o verão, o que poderia tornar o tempo em Samaria irrelevante nos dois horários. Em segundo lugar, é possível que estejamos dando muita importância a sua ida para tirar água em “um momento incomum”? Nós todos, por vezes, não fazemos coisas normais em horários incomuns? Isso não significa necessariamente que estejamos escondendo alguma coisa de alguém. Em terceiro lugar, vemos que as filhas do sacerdote de Midiã foram dar água aos seus animais por volta da mesma hora do dia, quando as pessoas supostamente não vão aos  poços (Êxodo 2:15-19).

Quando lemos essa história, nós não podemos ajudar mas, podemos perguntar como é possível, em uma sociedade conservadora como a  Samaritana, que uma mulher com tal histórico ruim, apoiasse os valores da comunidade e tivesse motivado toda a aldeia a largar tudo e ir com ela ver Jesus, um profeta Judeu “herege para os  Samaritanos”.  A lógica padrão seria como segue.  Ela tinha levado uma vida tão sem Deus que, quando outros ouviram de sua excitação e do encontro de um novo interesse espiritual  eles se admiraram e foram ver Jesus por si mesmos. Esta interpretação, ainda que possível, parece improvável para os autores deste livro e parece compreender enfoques teológicos muito mais tarde nessa história antiga, que tinha o seu próprio ambiente histórico. Estamos convencidos de que ler a história de uma maneira nova é mais lógico e cria menos problemas de interpretação do que a visão comumente aceita.

Vejamos  mais de perto esta passagem:

 

“Quando uma mulher Samaritana veio tirar água, Jesus lhe disse: ‘Você vai me dar de beber? (Seus discípulos tinham ido à cidade comprar comida). A mulher Samaritana lhe disse: ‘Você é um Judeu e eu sou uma mulher Samaritana. Como você pode me pedir água? ” (Pois os Judeus não se dão com os Samaritanos.) “(Vs.7-9).

 

Apesar do fato de que para a visão moderna as diferenças eram insignificantes e sem importância, Jesus e a mulher Samaritana sem nome eram de dois povos diferentes e historicamente antagônicos, cada um considerando que o outro  se desviou drasticamente da antiga fé de Israel. Em suma, suas famílias eram inimigas sociais, religiosas e políticas. Isto não era porque eles eram tão diferentes, mas precisamente porque eles eram muito parecidos.

De acordo com a perspectiva tradicional, a mulher Samaritana provavelmente reconheceu que Jesus era Judeu pela sua roupa Judaica tradicional. Jesus certamente estava usando franjas rituais em obediência à Lei de Moisés (Nm 15:38 e Dt 22:12). Desde que os homens Samaritanos  também  observavam a Lei de Moisés, é provável que os ex-maridos da mulher Samaritana e outros homens de sua aldeia também usassem a roupa ritual com franjas. A observância da lei Mosaica pelos Samaritanos ‘(lembrar que o termo Samaritanos significa os “guardiões” da lei e não as pessoas que viviam em Samaria)’ estava de acordo com a sua própria interpretação e diferia da visão Judaica em algumas questões, mas é importante lembrar que eles eram considerados pela comunidade Judaica Israelita mais como irmãos rivais  do que como estranhos não relacionados. 

Continuando a leitura:

“Se tu conhecesses o dom de Deus e quem é o que lhe pede água, você lhe teria pedido e ele te daria água viva.” ‘Senhor’, disse a mulher, “você não tem nada com que tirar água e o  poço é fundo. Onde você pode obter essa água da vida? És tu maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço e bebeu ele mesmo, como também os seus filhos e os seus rebanhos e manadas? Jesus respondeu: “Todo aquele que beber desta água tornará a ter sede, mas quem beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede. Na verdade, a água que eu lhe der se tornará  nele uma fonte de água a jorrar para a vida eterna. ” A mulher disse-lhe: ‘Senhor, dá-me dessa água, para que eu nunca mais fique  com sede e tenha que continuar vindo aqui para tirar água. ” Ele lhe disse: Vai, chama o teu marido e volte. ‘ “Eu não tenho marido”, ela respondeu. Jesus disse-lhe: “Você tem razão quando diz que não tem marido. O fato é que tiveste cinco maridos, e o homem que você tem agora não é seu marido. O que você acabou de dizer é verdade ” [3]. ‘Senhor ‘, disse a mulher, “Eu posso ver que você é um profeta. Nossos pais adoraram neste monte, e vós dizeis que o lugar onde se deve adorar está em Jerusalém. ”

Esta passagem tem sido frequentemente interpretada da seguinte forma: Jesus inicia uma conversação espiritual (vs.10). A mulher começa a ridicularizar declaração de Jesus apontando a incapacidade de Jesus fornecer o que ele parece oferecer (vs.11-12). Depois de um breve confronto em que Jesus chama a atenção para a falta de solução definitiva para o problema espiritual da mulher (vs. 13-14), a mulher continua com uma atitude sarcástica (vs.15). Finalmente, Jesus teve o suficiente e ele então expõe com força  o pecado na vida da mulher – um padrão de relacionamentos familiares interrompidos (vs.16-18). Agora, indo direto ao coração pela visão onisciente de Jesus, a mulher reconhece seu pecado em um momento de verdade (vs.19) chamando Jesus de profeta. Mas então, como todo incrédulo normalmente faz, ela tenta evitar os problemas reais do seu pecado e sua necessidade espiritual. Ela começa a falar sobre questões doutrinárias (versículo 20), a fim de evitar lidar com os problemas reais da sua vida. Embora esta maneira de ler este texto possa não ser a única, ela é acompanhada de uma visão geralmente negativa da mulher Samaritana.

Por esta interpretação popular pressupor que a mulher era particularmente imoral,  toda a conversa é vista à luz de um ponto de vista negativo. Gostaríamos de recomendar uma trajetória totalmente diferente para a compreensão desta história. Embora não seja um caso um hermético, essa trajetória alternativa parece ajustar-se melhor ao resto da história e, especialmente, a sua conclusão.

 

Relendo a História

 

Como foi sugerido anteriormente, é possível que a mulher Samaritana não estivesse necessariamente  tentando evitar qualquer pessoa. Mas, mesmo que ela estivesse, há outras explicações para sua fuga que não o sentimento de culpa por sua imoralidade sexual. Por exemplo, como se sabe as pessoas quando estão deprimidas não querem ver ninguém. A depressão estava presente no tempo de Jesus, assim como ela está presente na vida das pessoas hoje. Em vez de assumir que a mulher Samaritana trocou de maridos como quem troca de roupa, é  razoável pensar nela como uma mulher que tinha experimentado a morte de vários maridos, ou como uma mulher cujos maridos podem ter sido infiéis a ela, ou mesmo como uma mulher cujos maridos se divorciaram dela por sua incapacidade de ter filhos. Qualquer uma destas sugestões e muitas outras são possíveis  neste caso.

É importante notar que, ter cinco maridos sucessivos era inédito na sociedade antiga, especialmente em uma conservadora como a dos Israelitas Guardiões da Lei (Samaritanos). Este fato fez com que alguns comentaristas antigos e modernos sugerissem erroneamente que este encontro não era histórico, mas metafórico. O argumento usado foi de que ‘desde que os Samaritanos representavam gentios e, portanto, a situação absurda de ter cinco maridos deveria ter dado uma pista para o leitor que esta não é uma história real e nem uma mulher real’. Naquela sociedade, a menos que a mulher fosse rica, adotar para si um estilo de vida sem compromisso era uma impossibilidade econômica. Uma vez que não era  seu servo, mas ela mesma que foi  tirar água, concluímos que ela provavelmente não era rica e, portanto, simplesmente não podia pagar o tipo de estilo de vida com  que a temos dotado ao longo de séculos de interpretação cristã. Sem sequer considerar outras possibilidades como opções viáveis, aqueles que nos ensinaram, e aqueles que lhes ensinaram, têm consistentemente retratado essa mulher sob uma luz totalmente negativa. Acreditamos que isto seja desnecessário.

Se estivermos corretos em nossa sugestão de que essa mulher não era particularmente uma “mulher caída”, então talvez possamos ligar o seu testemunho incrivelmente bem sucedido na aldeia com a inesperada, mas extremamente importante referência de João aos ossos de José. Vale ressaltar que para os gentios e até mesmo hipotéticos leitores “Judeus” deste Evangelho, o lugar onde os ossos de José foram enterrados não seria tão importante, embora ainda significativo, do que teria sido para os Samaritanos Israelitas, uma vez que os ossos do Patriarca também ligam a presença de Deus com a vizinhança do Monte Gerizim e a cidade santa de Siquém. Quando ouvimos que a conversa ocorreu  ao lado de ossos de José, imediatamente lembramos da  história de José e  principalmente de seu sofrimento imerecido. Como você se  lembra, apenas parte dos sofrimentos de José foram auto impostos. Ainda no final, quando ninguém esperava por isso, os sofrimentos de José acabaram por tornar-se os eventos que salvaram o mundo da fome.

Agora, considere a conexão com José em mais detalhes. Siquém foi uma das cidades de refúgio, onde se proporcionava um paraíso seguro a um homem que tivesse matado alguém sem intenção (Js. 21:20-21). Como os habitantes de Siquém estavam vivendo suas vidas sob a sombra da prescrição da Torá eles eram, sem dúvida, bem cientes do estado incomum de graça e função protetora de Deus, que foi atribuído à sua cidade especial. Eles deveriam proteger as pessoas infelizes, cujas vidas foram ameaçadas de vingança pelos membros da família, mas na verdade eram inocentes de qualquer crime intencional que justificasse o castigo ameaçado [4].

José nasceu em uma família muito especial, onde a graça e a salvação deveriam descrever sua característica. Jacó, o descendente de Abraão e Isaac, teve outros 11 filhos, cujas ações, ao invés de ajudar seu pai a levantar José, variavam de explosões de ciúme ao desejo de se livrar para sempre de seu mimado, mas “especial” irmão. Mas havia mais. Foi em Siquém que Josué reuniu as tribos de Israel, desafiando-os a abandonar seus antigos deuses em favor de YHWH e depois de fazer a aliança com eles, enterrou os ossos de José lá. Lemos em Josué 24:1-32:

 

“Então Josué reuniu todas as tribos de Israel em Siquém. Ele convocou os anciãos, os líderes, os juízes e os oficiais de Israel, e eles se apresentaram diante de Deus … Mas se servir ao Senhor parece indesejável para vocês,  então  escolham hoje a quem vocês vão servir, se aos deuses que seus antepassados serviram além do Rio  ou aos deuses dos Amorreus, em cuja terra habitais. Porém, eu e a minha família serviremos ao Senhor. “… Naquele dia, Josué fez uma aliança para o povo, e em Siquém ele elaborou  decretos e leis para o povo (vs.26)  E Josué registrou essas coisas no Livro da Lei de Deus. Então ele pegou uma grande pedra e a erigiu ali debaixo do carvalho perto do lugar santo do Senhor… 31 Israel serviu ao Senhor durante toda a vida de Josué e dos anciãos que sobreviveram e que tinham experimentado tudo o que o Senhor tinha feito por Israel. E os ossos de José, que os israelitas haviam trazido do Egito, foram enterrados em Siquém, no pedaço de terra que Jacó comprara dos filhos de Hamor , pai de Siquém, por cem peças de prata. Esta terra tornou-se a herança dos descendentes de José”.

 

É interessante que o lugar deste encontro com a mulher Samaritana foi escolhido pelo Senhor da providência de uma forma tão bonita: uma mulher emocionalmente alienada que se sente desprotegida, enquanto ela vive na ou perto da cidade de refúgio, está tendo um fundamento na fé, uma conversa de compromisso  com o Renovador da Aliança de Deus – o Real Filho de Deus,  Jesus. Ela faz isso no mesmo lugar onde os antigos israelitas renovaram sua aliança, em resposta às palavras de Deus, selando-as com duas testemunhas: 1) a pedra (Js.24 :26-27), confessando com a boca as suas obrigações para com a aliança e a fé no Deus de Israel, e 2) os ossos de José (Js.24 :31-32), cuja história os guiou em suas viagens.

Em certo sentido, a mulher Samaritana faz a mesma coisa que os Israelitas antigos ao confessar a seus concidadãos a sua fé em Jesus como o Cristo e o compromisso com o Salvador do mundo. Lemos em João 4:28-39.

“Venham, ver o homem que me disse tudo o que eu já fiz. Poderia ser este o Cristo? “Eles saíram da cidade e foram para o lugar onde Jesus estava… Muitos dos Samaritanos daquela cidade creram nele, por causa do testemunho da mulher…”

A ligação entre José e a mulher Samaritana não termina aí. Lembrar que José recebeu adiantada uma bênção especial de seu pai, no momento da morte de Jacó. Era uma promessa de que ele seria uma videira frutífera subindo pela parede (Gênesis 49:22). O Salmo 80:8 fala de uma vinha sendo trazida do Egito, cujos ramos espalhados por toda a terra, acabaram por levar a salvação ao mundo através da videira verdadeira. Em João 15:1, lemos que Jesus se identifica como esta videira verdadeira e assim como o antigo Israel, Jesus também foi simbolicamente tirado do Egito (Mt 2:15). Em sua conversa com a mulher Samaritana, Jesus – a videira prometida na benção de Jacó a José – está de fato escalando o muro da hostilidade entre os Judeus Israelitas e Samaritanos Israelitas  para unir estas duas partes do seu reino através de Sua pessoa, ensino e ações. De uma forma profundamente simbólica esta conversa ocorre perto de um poço que foi construído por Jacó, a quem foi dada a promessa!

Agora que nós analisamos alguns simbolismos relevantes do Antigo Testamento, vamos reler essa história através de um olhar diferente. Ela pode ter sido algo como:

Jesus inicia uma conversa com a mulher: “Você vai me dar de beber?” Seus discípulos tinham ido à cidade comprar comida. A mulher se sente segura com Jesus, pois, como ele não é de sua aldeia, ele não sabe sobre sua vida ou  mesmo quão deprimida ela pode ter se sentido durante meses. Em sua opinião, ele era parte relacionada de uma comunidade religiosa herética. Jesus não teria tido nenhum contato com os líderes Samaritanos Israelitas  de sua comunidade. Ela estava segura. Esta abertura da mulher para Jesus é muito semelhante aos trabalhadores cristãos que procuram fora aconselhamento para seus problemas familiares. As pessoas que conhecem e amam são agradáveis, mas também podem ser perigosas. Quem sabe?! Elas podem transmitir informações que em alguns casos podem terminar a carreira ministerial do trabalhador. Assim, em casos difíceis, os trabalhadores do ministério cristão costumam optar por pagar especialistas em aconselhamento que são independentes e não ligados à suas igrejas e ministérios. O especialista é seguro. É o seu trabalho. Isto é tudo. Nesse sentido Jesus era seguro. Ele não era um Samaritano mas, Judeu.

O problema aqui não era simplesmente que Jesus era Judeu e ela uma Samaritana; seus povos, seus pais e avós, eram inimigos ferrenhos em áreas religiosas e políticas. Ambos os povos consideravam o outro como impostores. Os estudiosos apontam, apelando para o Talmude Babilônico, algumas declarações rabínicas talmúdicas tais como ” As filhas dos Samaritanos menstruam desde o berço” e,  portanto, qualquer coisa que eles manusearem seriam impuras para os Judeus (bNidd. 31b) e “É proibido dar a uma mulher qualquer saudação “(bQidd. 70a). É importante que estejamos conscientes de problemas metodológicos quando apelamos para o Talmud. O Talmude Babilônico foi codificado e editado muito mais tarde do que os Evangelhos (início dos anos 200 d.C contra o inicio dos anos 600 d.C). Portanto, devemos ser cautelosos ao usar o Talmud para explicar os Evangelhos, escritos muito antes. Ele não somente foi escrito muito mais tarde, mas também, como é amplamente aceito, não foi reconhecido como o único representante ou até mesmo maior do ensino Judaico até em algum momento entre os séculos 6º e 8º. Em outras palavras, ao contrário de hoje, representava apenas a elite e as classes rabínicas marginais e não o modo de pensar de toda a  comunidade Judaica. Tudo isso para dizer que a regra de não cumprimentar uma  mulher  pode não ter sido de todo  praticada por Jesus, o Judeu e, portanto, não pode ser usada sem critério na interpretação. Por outro lado, a referência as mulheres Samaritanas passando por períodos de menstruação desde o seu nascimento, embora , obviamente, mítica se encaixa perfeitamente com outras coisas que sabemos sobre o ódio profundo entre Samaritanos e Judeus. Mas  um bom nível de cautela deve ser exercido  em uma interpretação livre.

Jesus responde: “Se conhecesses o dom de Deus e quem é o que lhe pede água, você lhe teria pedido e ele te daria água viva.” É importante que nós imaginemos a mulher. Ela não estava rindo, ela estava tendo uma discussão informada, profundamente teológica e espiritual com Jesus. Esta foi uma ousada tentativa de apurar a verdade que estava fora de sua estrutura teológica aceita e certamente não passaria no teste das sensibilidades culturais dos Samaritanos “fiéis”. Ela discorda do  problema com Jesus, precisamente porque ela leva a sério a palavra de Deus (Torah Samaritana):

“‘Senhor’, disse a mulher,” você não tem nada com que tirar água e o poço é fundo. Onde você pode obter essa água da vida? És tu maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço e bebeu ele mesmo, como também os seus filhos e os seus rebanhos e manadas? Jesus respondeu: “Todo aquele que beber desta água tornará a ter sede, mas quem beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede. Na verdade, a água que eu lhe der se tornará  nele uma fonte de água a jorrar para a vida eterna. “A mulher disse-lhe: ‘Senhor, dá-me dessa água, para que eu nunca mais fique com sede e tenha  que continuar vindo aqui para tirar água”.

Após a interação acima, que bate em  uma corda familiar para o cristão que experimentou o poder de dar vida pela presença de Jesus e da renovação espiritual, Jesus continua a conversa. Jesus deixa a mulher Samaritana sem nome saber que Ele entende seus problemas muito mais completamente do que ela pensa, mostrando-lhe que ele está ciente de toda a dor e sofrimento que ela sofreu em sua vida.

“Disse-lhe: Vai, chama o teu marido e volte. ‘ “Eu não tenho marido”, ela respondeu. Jesus disse-lhe: “Você tem razão quando diz que não tem marido. O fato é que tiveste cinco maridos, e o homem que você tem agora não é seu marido. O que você acabou de dizer é verdade. ”

Lembrar a referência aparentemente obscura aos ossos de José  terem sido enterrados perto deste exato lugar onde a conversa aconteceu? No início da história, João queria nos lembrar de José. Ele foi um homem que sofreu muito em sua vida, mas cujo sofrimento foi finalmente usado para a salvação de Israel e do mundo conhecido. Sob a liderança de José, o Egito tornou-se a única nação que agiu com sabedoria, armazenando grãos durante os anos de fartura e, em seguida, foi  capaz de alimentar os outros durante os anos de fome. É altamente simbólico que esta conversa aconteceu na presença de uma testemunha silenciosa – os ossos de José. Deus em primeiro lugar permitiu que José passasse por uma  terrível injustiça física, psicológica e social,  mas ele então usou esse sofrimento para abençoar grandemente aqueles que entraram em contato com José. Em vez de ler esta história em termos de Jesus pregando a mulher imoral na cruz do padrão de moralidade de Deus, devemos lê-la em termos da misericórdia e compaixão de Deus pelo mundo destruido, em geral, e pelos Israelitas marginalizados, em particular.

De acordo com o ponto de vista popular, é, neste momento, condenada pela repreensão profética de Jesus, que a mulher procura mudar o assunto e evitar a natureza pessoal do encontro envolvendo-se em uma controvérsia teológica sem importância. O problema é que estas questões não são importantes somente para o leitor moderno. Elas eram uma preocupação muito real para os leitores antigos, especialmente aqueles cuja casa ficava na Palestina Romana. Portanto, vamos considerar a interpretação alternativa de que, vendo que Jesus conhecia sua situação íntima miserável e  também sua empatia compassiva, a mulher se sente segura o suficiente para quebrar a tradição e também para escalar o muro das associações proibidas. Ela faz uma afirmação que convida a um comentário de Jesus sobre uma questão que tem a ver com a diferença teológica fundamental entre os Judeus e os Samaritanos.

“‘Senhor’, disse a mulher,” Eu posso ver que você é um profeta. Nossos pais adoraram neste monte, e vós dizeis que o lugar onde se deve adorar é em Jerusalém”.

Como se pode lembrar os Samaritanos eram Israelitas situados  no Monte Gerizim de acordo com  sua compreensão do Pentateuco (Torá), enquanto os Judeus eram situados no Monte Sião em sua interpretação da mesma literatura, é certo que com variações ocasionais. Esta questão parece trivial para um cristão moderno que normalmente pensa que o que é realmente importante é que se pode dizer: “Jesus está em  minha vida como Salvador pessoal e Senhor”. Mas enquanto esta questão não incomoda ninguém hoje, era uma questão importante para os Samaritanos Israelitas e Judeus Israelitas e, por extensão, para  Jesus Judeu e a mulher Samaritana. Na verdade, esta conversa profundamente teológica e espiritual foi um encontro muito importante no caminho da história humana, por causa do tremendo impacto da mensagem cristã em todo o mundo desde que  este  encontro ocorreu.

Com medo e tremor a mulher Samaritana, guardando o seu sentimento de humilhação e amargura para com os Judeus, fez sua pergunta na forma de uma declaração. Ela recebeu de Jesus algo que ela definitivamente não esperava ouvir de um profeta Judeu:

“Jesus declarou: ‘Acredite em mim, mulher, vem a hora em que você não vai adorar o Pai nem neste monte, nem em Jerusalém. Os Samaritanos adoram o que não conhecem nós adoramos o que conhecemos porque a salvação vem dos Judeus. Mas a hora está chegando e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade, pois são estes os adoradores que o Pai procura. Deus é espírito, e os seus adoradores devem adorá-lo em espírito e em verdade”.

Em nossa leitura, portanto, a pergunta da mulher Samaritana reflete uma  boa, honesta e justa suposição de que o ministério de Jesus e chegada em Samaria já tinha se tornado obsoleto. No livro de Hebreus (Hb.12 :1-24), o autor dirigiu-se à comunidade crente. Ele afirmou que a grandeza da fé no Deus de Israel por meio de Jesus, o Messias deve provocá-los a uma resposta muito maior do que os consagrados na tradição Judaica. Ele exortou os crentes a perseverar na fé, como segue:

“Vamos fixar nossos olhos em Jesus, autor e consumador da nossa fé … Você não vem para uma montanha que pode ser tocada e que está ardendo em fogo … Mas você veio ao Monte Sião, à Jerusalém celestial, a cidade do Deus vivo. Você juntou-se a milhares e milhares de anjos em alegre assembléia, à igreja dos primogênitos, cujos nomes estão escritos no céu. Viestes a Deus, o juiz de todos os homens, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados, a Jesus, o Mediador de uma nova aliança, e ao sangue da aspersão, que fala melhor do que o sangue de Abel”.

 

O argumento básico é que a responsabilidade de observar a Nova Aliança é muito maior do que qualquer nível de compromisso de responsabilidade que foi encontrado pelo povo de Deus no passado. Portanto, manter este compromisso é essencial, apesar das circunstâncias difíceis. O autor apela para tudo o que é maior: Jesus é maior do que o grande Moisés, a Nova Aliança é maior do que a grande Antiga Aliança, o sangue do homem justo (Jesus) é maior do que o sangue do justo Abel. Basicamente, quanto maior for a aliança, maior é a responsabilidade. Um dos argumentos incluídos na comparação geral no livro de Hebreus é que o Monte Sião celeste é melhor e maior que a grande Sião terrena.

Jesus já havia afirmado que o centro da adoração terrena teria que ser transferido da Jerusalém física para a Jerusalém espiritual celestial concentrada em si mesmo, quando ele falou com Natanael. Por favor, permita-nos explicar. O incidente é relatado em João 1:50-51 .

“Jesus disse: ‘Você crê porque eu disse que te vi debaixo da figueira. Você verá coisas maiores do que istas. ” Em seguida, ele acrescentou: “Digo-lhes a verdade, você verá o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do Homem”.

Jesus invocou a grande história da Torah do sonho de Jacó, dos anjos de Deus subindo e descendo sobre a Terra Santa de Israel, onde ele estava dormindo (Gn 18:12). Ele disse a Natanael que muito em breve os anjos estariam subindo e descendo, e não em Betel (em hebraico – Casa de Deus), que os Samaritanos acreditavam estar identificada com Monte Gerizim, mas sobre a última Casa de Deus – o próprio Jesus (João 1: 14).

A religião Samaritana oficial, tanto quanto sabemos, não incluía quaisquer escritos proféticos, pelo menos, tanto quanto sabemos por fontes mais antigas escritas sobre os Samaritanos. “A mulher disse, ‘Eu sei que”o Messias “(chamado Cristo) está chegando. Quando ele vier, vai explicar tudo para nós “” Então Jesus declarou: “Eu que falo contigo, sou ele” (vs. 25-26). Lemos em Dt 18: 18-19:

“Vou levantar para eles um profeta como tu dentre seus irmãos, vou colocar as minhas palavras na sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar. Se alguém não ouvir as minhas palavras que o profeta falar em meu nome, eu o chamarei para dar conta”.

Apesar de um antigo texto Samaritano falar figurativamente de alguem  semelhante ao Messias – Taheb (Marqah Memar 4: 7, 12), os Samaritanos do tempo de Jesus somente esperam um grande mestre-profeta. O “Messias” como Rei e Sacerdote era um Judeu Israelita, não um conceito Samaritano Israelita, tanto quanto sabemos. Por essa razão, a resposta da mulher Samaritana mostra que esta não era uma conversa imaginária ou simbólica (ele vai explicar para nós tudo). Em vista disso, parece que agora a mulher graciosamente usava terminologia judaica para se relacionar com Jesus – o Judeu [5]. Entre os Samaritanos isto não era habitual. Assim como Jesus estava escolhendo escalar o muro de tabus, agora foi a mulher Samaritana. A história deste encontro “dá orientações sobre como lidar com feridas e divisões, especialmente antigas… no periscópio Samaritano ele é apresentado como um reconciliador de antigos inimigos.” Iremos considerar este tema no capítulo final da aplicação deste livro intitulado – A Chamada.

A história muda rapidamente com o retorno dos discípulos, a sua reação e interação semelhante a um comentário com Jesus. Este intercâmbio é encaixado entre o encontro da mulher Samaritana e os homens da sua aldeia. Os discípulos ficaram surpresos ao vê-lo conversando com a mulher Samaritana, mas ninguém o desafiou sobre a inadequação de tal encontro.

 

“27 Naquele momento os seus discípulos voltaram e ficaram surpresos ao encontrá-lo conversando com uma mulher. Mas ninguém perguntou: “O que você quer?” Ou “Por que você está falando com ela?” 28 Então, deixando o seu cântaro, a mulher voltou à cidade e disse ao povo: 29 “Venham, vejam um homem que me disse tudo o que eu já fiz. Poderia ser este o Cristo? “30 Eles saíram da cidade e foram em direção a ele. 31 Equanto isso, os seus discípulos pediram a Jesus: “Mestre, coma alguma coisa.” 32 Mas ele lhes disse: “Eu tenho um alimento para comer que vocês não conhecem.” 33 Então os discípulos diziam uns aos outros: “Será que alguém já trouxe comida para ele? “34” A minha comida “, disse Jesus,” é fazer a vontade daquele que me enviou, e realizar a sua obra. (João 4:27-39 )”.

 

Embora seja possível que os discípulos tenham ficado surpresos que ele estivesse sozinho com a mulher, o contexto geral da história parece indicar que a resposta do discípulo tinha que, em vez disso, faze-lo conversar com a mulher Samaritana. Deixando para trás o seu cântaro, a mulher correu para a cidade para contar ao seu povo sobre Jesus. Faz uma pergunta importante para eles: seria este aquele a quem Israel tem esperado por muito tempo? Falando como se ele estivesse no contexto do encontro, Jesus aponta aos seus discípulos que o que ele estava fazendo era a pura e simples vontade de Deus. Que fazer a vontade de seu Pai, deu-lhe a divina energia da vida.  Esta energia divina lhe permitiu continuar seu trabalho. Continuamos a leitura:

 

“Vocês não dizem: ‘Daqui a quatro meses chegará a colheita? Eu digo a vocês, abram os olhos e olhem os campos! Eles estão maduros para a colheita. Até agora, o ceifeiro recebe  seu salário, até agora ele colhe o fruto para a vida eterna, para que o semeador e o ceifeiro possam ser felizes juntos. Assim é verdadeiro o ditado ‘Um semeia e outro colhe ‘. Eu vos enviei a colher o que vocês não plantaram. Outros fizeram o trabalho duro, e vocês tem colhido os benefícios de seu trabalho”.

 

Nestes versículos, Jesus desafiou seus discípulos. O escritor do Evangelho de João está desafiando seus leitores a considerar a plantação que está pronta para a colheita. É quase certo que os discípulos de Jesus pensavam que a colheita espiritual pertencia sozinha à comunidade Judaica. Jesus desafiou-os a olhar para fora, para a comunidade vizinha herética e contraditória para a colheita – um campo que não tinham considerado até este encontro. O significado do comentário de Jesus sobre o encontro não foi para destacar a importância da evangelização em geral, mas sim para chamar a atenção para os campos que antes não eram vistoss ou considerados  inadequados para a colheita.

Enquanto Jesus, sem dúvida, estava conversando com seus seguidores sobre a adequação de ensinar os caminhos de Deus  para os Samaritanos, ele ouviu ao longe as vozes da multidão aproximando-se dele. A testemunha fiel deste evangelho, descreve o fato  assim:

“Muitos dos Samaritanos daquela cidade creram nele, por causa do testemunho da mulher,” Ele me disse tudo o que eu já fiz. ” Assim, quando os Samaritanos foram a ele, pediram-lhe que ficasse com eles, e ele ficou dois dias. E por causa das suas palavras, muitos outros creram. Eles disseram à mulher: “Agora  não acreditamos apenas por causa do que você disse,  agora nós mesmos temos ouvido e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo” (vs.39-42).

 

Hermenêutica honesta

 

A interpretação da Bíblia é tarefa difícil. É tão difícil como interpretar qualquer outra coisa na vida. Nós trazemos nosso passado, as nossas noções preconcebidas, nossa teologia já formadas, os nossos pontos cegos culturais, a nossa posição social, nosso sexo, nossos pontos de vista políticos e muitas outras influências para a interpretação da Bíblia. Em suma, tudo o que somos, de alguma forma determina a forma como nós interpretamos tudo. Isto não implica que o significado do texto é dependente de seu leitor. O significado permanece constante. Mas a leitura do texto difere e depende de todos os tipos de coisas que rodeiam o processo de interpretação. Em outras palavras o que um leitor ou ouvinte retira do texto pode diferir  muito de pessoa para pessoa.

Uma das maiores desvantagens na empreitada de interpretação da Bíblia tem sido a incapacidade de reconhecer e admitir que uma interpretação particular pode ter um ponto fraco. O ponto fraco é geralmente determinado por preferências pessoais e desejos sinceros de provar uma teoria particular, independentemente do custo. Nós, os autores, consideramos que ter a consciência de nossos próprios pontos cegos e estar honestamente dispostos a admitir problemas com nossas interpretações, quando existem, são mais importantes do que o brilhantismo intelectual com que defendemos nossa posição.

Uma oportunidade de exercer uma abordagem honesta é quando comentaristas reconhecem que há algo na sua interpretação, que não parece se encaixar com o texto e os comentaristas não sabem bem como explicar isso. O que sentimos pode ser legitimamente sugerido como um desafio para a nossa leitura da história da mulher Samaritana são as palavras que o autor do Evangelho coloca em seus lábios quando ela diz a seus concidadãos sobre seu encontro com Jesus. Ela diz: “Ele me disse tudo o que eu já fiz “O que teria correspondido perfeitamente a nossa interpretação  se suas palavras tivessem sido” Ele me disse tudo o que aconteceu comigo “ou melhor ainda” foi feito por mim”.

Existem várias opções viáveis para resolver este problema. Algumas das opções incluem questões de gramática e a existência hipotética de uma versão anterior em aramaico do Evangelho de João. Embora levando em conta estas possibilidades, os autores consideram que a melhor resposta é  se referir a um manuscrito do Evangelho de João, que tem a frase em uma versão mais curta. Neste manuscrito, as palavras da mulher não terminam com “Ele me disse tudo o que eu já fiz “, mas com “ele me disse tudo”. Estas palavras podem referir-se ou a qualquer circunstância auto imposta ou por outros e não por si só apresentar qualquer tipo de problema para a nossa leitura da história.

A próxima pergunta seria por que a leitura deste manuscrito deve ser preferida em relação ao comumente usado? Para explicar isso, vamos precisar introduzir uma importante ferramenta de estudos bíblicos que pode ser desconhecida para muitos leitores. No entanto, muitos de vocês têm encontrado os resultados da aplicação desta ferramenta muitas vezes por pessoas que trabalham com novas traduções da Bíblia. Por exemplo, muitas Bíblias modernas colocam entre parênteses o texto de João 8:1-11 e mencionam que os manuscritos mais antigos e os mais confiáveis não contêm a amada história da mulher apanhada em adultério que foi trazida a Jesus (Marcos 16: 9-20 é tratado da mesma forma). Esta história pode ser verdade e pode ter sido transmitida oralmente antes de ser incorporada ao texto de João, mas deve-se reconhecer que, mesmo se essa história for verdadeira, ela deve ter sido inserida só mais tarde por um copista. A ferramenta interpretativa que foi usada aqui é chamada de crítica textual. A nomenclatura é enganosa, uma vez que o texto não está sendo criticado, mas analisado e comparado com outros manuscritos. Em outras palavras crítica textual refere-se a uma análise cuidadosa de um texto, em comparação com outros textos, com o objetivo expresso de determinar os mais antigos e precisos manuscritos.

A crítica textual considera vários manuscritos antigos, uma vez que não temos um único original de qualquer livro bíblico, a fim de determinar o texto que seria o mais próximo possível do original. A crítica textual usa todos os manuscritos descobertos, recentes e antigos. Embora para alguns cristãos, propor a relevância de tal método poderia implicar em incredulidade, estamos convencidos de que, quando utilizado de forma responsável este método pode ser uma ferramenta importante nas mãos de intérpretes de textos antigos que sejam honestos, capazes e, principalmente, crentes. Como pode este método científico ajudar?

Um exemplo é o princípio geral que a crítica textual usa para determinar qual manuscrito é mais antigo, um princípio que poderia ser chamado de “prioridade do manuscrito mais curto.” Um manuscrito mais curto é preferido, porque os antigos escribas eram mais propensos a expandir o texto que eles estavam copiando do que a torná-lo mais curto. A expansão do texto era feita com alguma liberdade no mundo antigo, em contraste com o desconforto geral com tal prática dos leitores modernos, um desconforto compartilhado pelos autores deste livro.

Ainda, é claro, era possível que o texto mais longo (no nosso caso, “Ele me disse tudo quanto tenho feito”) fosse o original. Mas o método da crítica textual afirma que, em geral, o oposto é o caso. O texto mais curto é mais provável que tenha sido o original (no nosso caso “Ele me disse tudo”) e só mais tarde teria sido expandido por um escriba que considerou que o texto poderia ser melhorado e seu significado esclarecido se ele acrescentasse no final “eu já fiz”. Se estivermos corretos em nossa compreensão e o contexto da história argumenta a nosso favor, então seria justo dizer que o escriba cristão em seu desejo de ajudar o leitor melhorando o fluxo da narrativa, na verdade, acabou enviando o leitor para um sentido interpretativo diferente.

 

Conclusão

 

Nos tribunais democráticos seguimos o princípio “inocente até prova em contráro.” Em certo sentido, estamos declarando aqui para o tribunal de nossos leitores que acreditamos que temos apresentado provas suficientes para mostrar “a presença de uma dúvida razoável.” Estamos argumentando que as acusações de “imoralidade e não buscar a verdade espiritual” contra a mulher Samaritana devem ser descartadas. Os motivos são a falta de provas e a presença de outros cenários prováveis que poderiam explicar a interação entre ela e Jesus de uma forma mais satisfatória. Argumentamos que esta história deve servir como um exemplo e uma chamada para reconsiderar a mensagem das Sagradas Escrituras em seus contextos históricos e com maior disposição para pensar fora das tradições aceitas que podem, em última análise, não ter nada que as apoie adequadamente. No início do capítulo dissemos que não estamos apresentando um caso hermético. Nós, contudo, sugerimos uma alternativa possível para a interpretação usual. Acreditamos que a nossa alternativa é aquela mais responsável. Nossas reivindicações são, portanto, modestas, mas permanecem desafiadoras. Foi Mark Twain que disse: “A lealdade a uma opinião petrificada  nunca quebrou uma corrente ou livrou uma alma humana.”

 

© By Eli Lizorkin-Eyzenberg, Ph.D.


[1] É um erro pensar que a principal razão para a antipatia Judaica em relação aos Samaritanos era racial. O Judaísmo sempre teve uma forte tradição de conversões dos Gentios, onde os Gentios convertidos se tornaram Judeus de pleno direito e eram aceitos pela comunidade. Um exemplo notável de tal atitude é o rabino Akiva que não era etnicamente Judeu (nem ele nem seus pais passaram por uma conversão formal ao Judaísmo). Não é o DNA não Judeu que foi responsável pela antipatia Judaica. A relação conflituosa foi em grande parte de natureza religiosa. O componente político de rivalidade também não deve ser negligenciado quando se considera as razões para o relacionamento negativo entre Samaritanos e Judeus. Por exemplo, quando Alexandre o Grande passou pela região, foi relatado que ele  pagou tributo ao Deus de Israel, no Templo do Monte Gerizim e não no Monte Sião.

[2] Isso pode ter sido um caso de corrupção textual onde a letra final (“mem” foi substituído por “resh”) foi confundida por um escriba.

[3] Ver Calum M. Carmichael. O casamento e a mulher Samaritana. Estudos do Novo Testamento 26 (1980): 332-346.

[4] Ver também Sl. 60:6-7 e Sl. 108:7-8 onde literalmente se diz duas vezes que Efraim é equipamento de proteção de Deus – capacete.

[5] Os Samaritanos chamavam  seu templo de “Zeus o amigo de estranhos”, evitando assim problemas sob Antíoco IV (2 Mac 6:2), que reforçou ainda mais os sentimentos negativos entre Judeus e Samaritanos. Dt.27: 3 no MT  indica o Monte Ebal como o lugar onde o primeiro altar foi construído, enquanto o Pentateuco Samaritano considera o Monte Gerizim como sendo este lugar. Não está claro se o MT mudou a identidade da montanha por causa de pontos de vista anti-Samaritanos ou vice-versa.

 

FONTE:

https://jewishstudies.eteacherbiblical.com/pt-br/revisando-historia-da-mulher-samaritana-joao-4/